segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

orgulho

O nosso amigo Kenneth fez a gentileza de nos enviar um DVD com a sua série "Raballder", um documentário em 6 episódios sobre uma equipa de andebol gay norueguesa que tenta passar da 4ª para a 3ª divisão. Neste momento a série passa na televisão norueguesa mas já foi comprada por canais suecos e dinamarqueses.
Ontem à noite vimos os primeiros dois episódios e estamos super entusiasmados. O resultado é brilhante. Mostrar a vida real de vários homossexuais de forma tão cândida e descomplicada é desarmante e enternecedor.
Estou orgulhoso do meu amigo e já o comecei a chatear para põr legendas e enviar para o festival gay e lésbico de lisboa (onde há 2 anos passou outro documentário seu "The secret club")

250 anos

Ontem o meu iPod passou aleatóriamente "Waiting for the miracle" do Leonard Cohen. E face ao recente bombardeamento mediático houve uma frase dessa canção que se iluminou de significado:

"The maestro says it´s Mozart, but it sounds like bubble-gum"

Entretanto, marcámos bilhetes para ir a Salzburgo em Maio. Espero o inferno com o "Eine Kleine Nachtmusik" como banda sonora, mas achei que seria um bocadinho desleal para com os leitores estar a escrever histórias passadas em Salzburgo sem nunca lá ter estado... os sacrifícios que se fazem pela arte...

Por outro lado, o meu recente frenesim de investigação desenterrou um fascinante livro sobre vikings das prateleiras lá de casa e o verdadeiro Skråmestø leu-o de uma ponta à outra e agora ficou com idéias de escrever uma história de vikings passada em Istambul. Quererá isto dizer férias na Turquia no verão? Acho que estamos a comprometer as nossas férias demasiado. Por mim, uns dias sossegados na Quarteira ou em Armação de Pêra nem soa mal. Eu quero é férias! Já!

segunda-feira, 23 de janeiro de 2006

028- Os Herdeiros

A ermida de São Saturnino, não sei se alguma vez lá foste, pouco mais parecia que um celeiro de portas abertas e paredes nuas. Um dos amigos do padre Matos, João Paulo, acho que que se chamava, sabia muito sobre Sintra, ou disso se gabava, e contou-nos algumas histórias relacionadas com a Peninha e a ermida, mas quando o Jaime lhe perguntou se ele sabia quem era o São Saturnino e porque lhe tinham erguido ali uma capela ele não soube responder. E nem o padre Matos sabia fosse o que fosse sobre o Santo. Enquanto todos se lamentavam do esquecimento a que estavam condenados os santos menos milagreiros, eu, por algum motivo, recordei-me perfeitamente de quem ele era.
A tia Júlia impingira-me em tempos um dicionário de santos, antes de uma visita que tínhamos feito ao Museu de Arte Antiga. “Já que vão olhar para os quadros, ao menos saibam o que estão a ver”. Assim me ensinara destinguir a Santa Catarina pela roda, o São Vicente pela corda, etc… Mitologia medieval, chamava-lhe ela.
Assim pude contar aos outros que São Saturnino fora um padre cristão na Gália romana, cuja passagem diária frente ao templo de Júpiter aparentemente fazia calar os oráculos. Como tal, foi intimado a sacrificar um touro no templo mas, recusando-se a fazê-lo, foi ele atado ao touro que o arrastou pela escadaria do templo e o matou.
“Chamo a esses santos Martiris Vulgaris”, disse o João Paulo, “não admira que tenha sido esquecido”.
“A mim esta história sempre me pareceu uma trágica paródia do rapto de Europa. Aliás, acho que comentei isso com a tia Júlia na altura em que a li. Aqueles romanos devem-se ter divertido a montar o velhote no touro.”, disse eu.
“O que me intriga é porque raio vieram fazer uma capelinha a esse santo aqui no fim do mundo, na ponta da Europa.”, disse o Jaime.
“Era o santo cristão que calava os deuses pagãos. Mas aqui, pelos vistos, não teve grande sucesso”, disse eu.
Enquanto olhávamos uns para os outros sem saber o que acrescentar às palavras que me tinham saltado da boca, a noite pareceu apressar-se a cair lá fora, tornando aquelas paredes ainda mais esquálidas e tristes.
“Vamos”, disse o padre Matos de repente, “Já nos estamos a atrasar demais e igrejas desconsagradas são perigosas à noite”. Dito isto, benzeu-se.
“Não sabia que era supersticioso”, brincou o Jaime com ele.
“Sou religioso, Jaime. Pode parecer-te o mesmo, mas há uma grande diferença”. E com gestos largos enxotou-nos para fora.

027 - Os Herdeiros

Tomámos a auto-estrada de Cascais e a serra de Sintra começou a aproximar-se pela nossa direita como o lombo negro de algum monstro gigante que mergulhasse do mar para a terra. O padre Matos apontou-me a silhueta do Palácio da Pena no perfil recortado contra o limpo céu da Primavera e depois a Peninha, o outro cume mais alto.
Seguimos para o cabo da Roca aonde fomos olhar para o horizonte, já que eu e o Jaime também nunca tinhamos estado no ponto mais ocidental do continente europeu, e depois, voltando um pouco para trás, deixámos os carros estacionados à beira da estrada e lá fomos, mochilas às costas, entrando pelo bosque, atacando a montanha a passos largos.
Eu fui ficando para trás porque, de todos, era quem menos estava habituado áquilo e não estava com disposição para conversas, ao contrário dos outros e do Jaime, que, familiarizado já com eles, trocava piadas e fazia perguntas sobre acampamentos, caminhadas e nós de escuteiro.
Fui o último a chegar à Peninha, já todos se tinham cansado da vista. Enquanto esperavam por mim tinham aberto as bolachas e os cantis e faziam o primeiro piquenique sentados nas rochas, à beira de uma igreja abandonada. Eu voltei-lhes as costas e fiquei a olhar para o mar e para o pôr-do-sol fulgurante que tingia o horizonte a ouro. Percebi então porque é que o padre Matos insistira para que fôssemos áquela hora. Ele tivera de assegurar umas sete vezes a minha mãe de que conseguiam montar as tendas de noite, antes de ela nos deixar vir, mas valera a pena.
O Jaime veio ter comigo e ficou só ali ao meu lado, deixando-me arder de raiva e de ciúme. Não disse nada. Ficou só a ouvir-me arfar, ainda cansado da subida.
Entretanto o Sol deixou-se engolir pelo mar e a mudança sentiu-se tão subitamente ali na montanha que senti um arrepio de frio correr sobre o suor das minhas costas. Era como se um outro poder se tivesse instaurado sobre a terra. A noite começava agora.
O Jaime deve ter sentido algo parecido porque se aproximou de mim e pôs um braço por cima dos meus ombros. Ficámos ainda um pouco a olhar para o espectro, último rastro de luz que o sol deixara.
“Eles estavam-me a contar que há quem acredite que esta montanha era a ligação do continente da Atlântida à Europa, e que é o único bocado dela que resta fora de água.”
Continuei a olhar para o horizonte e respondi, “Quem inventou isso esteve aqui de certeza.”
Devagar, senti que a minha irritação se dissipava. Bastava que o Jaime estivesse ali, a meu lado. Estendeu-me uma bolacha. Eu sorri.
“Anda”, disse-me, “tens de vir ver a igreja. São Saturnino, lembra-te alguma coisa?”

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Arsene Lupin

Alguma relutancia em ver um dos meus heróis literários de juventude adaptado ao cinema, mas como é feito por franceses e tem a Kristin Scott Thomas pode ser que se safe pela positiva (o trailer é daqueles feitos para o publico pipoqueiro, mas isso hoje em dia não quer dizer nada). Aguardo com expectativa.

trailer aqui:
http://www.tf1international.com/download/75/ARSpromo.wmv

Erase and Rewind

Caros leitores,

Finalmente dei-me ao trabalho de rever tudo o que já tinha escrito n"Os Herdeiros". Como tal, achei que valia a pena republicar tudo outra vez. Não que tenham acontecido grandes mudanças na história (quem já leu excusa de ler outra vez), as principais diferenças estão nas vírgulas, acentos e parágrafos, mas, como eu escrevo isto directamente para o blog, lendo tudo de seguida, tornaram-se óbvias algumas falhas no fluir do texto.

Também, como um leitor atento já tinha apontado, o fascículo 27 (agora com nr.26 porque tinha inadvertidamente saltado um numero) estava demasiado "explícito". Por isso apaguei-o e reescrevi-o. Esse é que se recomenda que seja lido novamente por quem já tinha lido a versão anterior.

Continuam a ser bem vindos os comentários, nem que sejam sobre ortografia e gramática.

Obrigado pela atenção,
Eu

026 - Os Herdeiros (versao revista)

Fomos ter com o padre Matos e os amigos ao largo da Sé, ainda com a minha mãe colada aos calcanhares, para ver quem eram os rapazes com quem íamos e para os fazer prometer que nos iam trazer de volta sem um arranhão. Tinham estacionado aí os dois carros, um dos quais uma carrinha com apenas dois lugares. E esse foi o problema. Na altura de nos dividirmos pelos carros, cinco num e dois no outro, o padre Matos, que conduzia a carrinha, disse, “porque não vens comigo, António?”, e eu não tive cara para dizer que não.
Mais vale explicar-te logo o que senti. Resumindo muito simplesmente, fiquei chateado por não ir no outro carro porque os amigos do padre Matos eram todos muito giros, viris e simpáticos, Porque queria ir com o Jaime e não queria que o Jaime fosse com eles sem mim (ciúmes), e não queria estar sozinho ao pé do padre Matos porque ele me atraía sexualmente e eu achava-o irritante, hipócrita e idiota. É claro que na altura isto era apenas uma grande confusão na minha cabeça e suponho que emergia sob a forma de amuo, impaciência e fingido desinteresse. Mas lá fui, sentei-me ao lado dele.
Tenho estado a fazer um esforço para me lembrar do que falámos nessa pequena viagem, nós os dois. Falámos de livros, certamente, mas não me lembro das perguntas que ele fez sobre a biblioteca da tia Júlia. A minha cabeça estava noutro lado, no carro onde ia o Jaime, mas a conversa incessante dele e as perguntas insidiosas devem ter começado a irritar-me. Além disso, comecei a ficar com a impressão de que ele me queria saltar para cima. No momento em que entrámos para o carro, ele, esfregando a mão no meu joelho perguntou, “Então, pronto para a diversão?”. Eu fingi não ter notado um segundo sentido nas palavras e achei que, embora a mão dele se tivesse demorado um bocadinho demais no joelho e subido, ao retirar-se, talvez mais para a coxa do que o devido, não devia dar importância áquilo. Mas pôs-me em alerta. E enquanto ele continuava a enrolar perguntas numa conversa aparentemente inocente, eu só me lembrava da fábula da raposa e do corvo. Ele tinha definitivamente mais do que um interesse educado sobre mim, o Jaime, a nossa família. Terei sido eu quem lhe falou nessa altura da biblioteca da tia Júlia? Provavelmente. Mas não importa, fosse eu, o Jaime ou a própria tia Júlia, o cabrão por essa altura já tinha farejado o seu queijo e nós continuávamos sem ver a raposa disfarçada na pele da ovelha.

025 - Os Herdeiros (versao revista)

Foi essa a minha, nossa, primeira ida a Sintra. Tínhamos 16 anos.
E nem por um momento parei para me questionar porque é que os nossos incontáveis passeios de fim de semana nunca tinham incluido Sintra. A tia Júlia diria, “Marta, porque não levas os miúdos a Tomar / Conímbriga / Alcobaça / Mértola / Évora / Marvão / etc / etc…” E lá nos montávamos nós no Opel da minha mãe para ir ver as maravilhas históricas de Portugal. Até Espanha, às vezes. Mas Sintra… ela nunca referira Sintra, mesmo sendo logo ali, a escassos quilómetros de Lisboa.
Outra diferença relevante em relação a outros passeios foi a total ausência de lição histórica. Normalmente, na noite antes de viajarmos, a tia Júlia fazia um bolo, chá, e sentávamo-nos a ouvi-la falar dos túmulos de D. Pedro e Inês de Castro, de mosaicos e termas romanas, de ruínas, restauros, castelos, mosteiros, antas, igrejas, capelinhas e o que mais houvesse para saber, ver, sentir e pensar em certos sítios. Tanto que era como lá estar ainda antes de ir.
Porque depois ela nunca vinha connosco, mesmo que fossemos a sítios onde ela nunca tinha ido (que por acaso eram poucos, mas mesmo assim…). Ela tinha a perfeita noção do quanto dominava as nossas vidas e suponho que essa era a sua maneira de nos libertar. Apesar disso, nós sabiamos que se regressássemos sem ter visto um chafariz, um pelourinho, que ela tivesse referido, teriamos de enfrentar o seu olhar desapontado. E isso, simplesmente, não se fazia. Nem uns pastéis de tentúgal, ou umas barrigas de freira, serviam, aprendemos, para lhe apaziguar os resmungos, quando nos falhava um ponto do itinerário.
Mas desta vez, sobre Sintra, nada.
Sorria simplesmente por nos ver tão entusiasmados. Iamos acampar pela primeira vez. O padre Matos ficara de nos arranjar a tenda e os sacos-cama, mas fomos comprar mochilas, e comida e lanternas e canivetes. Desde que o Jaime comprara o arco e as flechas que não tinhamos andado tão histéricos pela casa.
A minha mãe, que saíra mais cedo de propósito para se despedir de nós, ia dando recomendações à medida que se lembrava: “Não apanhem frio. Se fizerem uma fogueira ponham pedras à volta. Pus pensos e algodão no bolso da frente da mochila. Têm pilhas nas lanternas?”. A tia Júlia tentava acalmá-la explicando que íamos estar cercados de antigos escuteiros que acampavam e faziam caminhadas na floresta praticamente desde o berço, mas a minha mãe continuava a ver aquilo como a expedição para procurar a nascente do Nilo.
Não, não demos por nada. Com tanta excitação ninguém deu pelo silêncio, pelos lábios cerrados, pelas rugas na testa, da tia Júlia.
Eu só as vejo agora, agora que penso nisso.
Imagino-as perfeitamente.
Ela sabia o que estava a fazer. Sempre soube.
Nem os pássaros ensinam os seus a voar. Atiram-nos para fora do ninho.

024 - Os Herdeiros (versao revista)

Mas o curioso é que, quanto mais nos afastávamos nas disciplinas de estudo, ele com os desportos e o árabe e eu com a música e o norueguês, mais próximos nos sentíamos. Passávamos fins de tarde e fins de semana juntos, a conversar, a construir o nosso pequeno mundo a partir do que cada um trazia, dizia, pensava das suas diferentes disciplinas. Mas éramos párias. Era difícil fazer outros amigos, na escola ou fosse onde fosse. Não conseguíamos pertencer a sítio nenhum senão juntos. E isso tornou-se cada vez mais… sufocante.
Houve algumas tentativas de nos pôr a socializar com outros “jovens”, todas falhadas. Eu não tinha nada para conversar com outros alunos da Runa nas festas de fim de ano lectivo em que tocávamos todos juntos, uns para os outros, e o Jaime contentava-se a mandar para o colchão todos os colegas do Judo sem se interessar em conhecê-los. Até a tia Júlia, dizendo que nos achava “demasiado incestuosos”, convenceu-nos uma vez a ir acampar com o padre Matos e um grupo de antigos escuteiros.
O padre Matos tinha começado a aparecer com alguma regularidade lá por casa. Ele parecia apreciar as discussões teológicas que acabávamos sempre por ter com ele, mesmo que eu e o Jaime o deixássemos com os cabelos em pé com algumas das nossas opiniões sobre deus que não tinham nada de católicas. Chamava-nos “os pequenos comunistas”. E eu levava-o a sério e tentava-lhe explicar que embora os meus pontos de vista sobre a função do homem em relação ao mundo tivessem de facto uma base socialista, havia ainda assim um sentido gnóstico em mim que me levava a achar as teorias marxistas um tanto áridas. Mas ele nunca lera Marx e não percebia bem do que é que eu estava a falar, por isso não me levava a sério.
Não que ele nos tentasse pregar a fé. Nada que se parecesse. Desde o pricípio que ele percebera que éramos um caso perdido, mas acho que ele gostava das nossas discussões precisamente para reassegurar a sua própria fé. Não há como ter alguém contra nós para nos ajudar a solidificar crenças e argumentos. E acho que ele devia também estar um pouco farto de falar com as beatas, que embora fossem as da freguesia da Sé de Lisboa, pouco se desviavam nas suas conversas dos dogmas de um catolicismo supersticioso de aldeia.
Assim aconteceu que, tendo-se ele tornado uma visita relativamente regular, a tia Júlia lhe acabasse por pedir que ele nos levasse “a arejar” num passeio de antigos escuteiros que ele mencionara.

023 - Os Herdeiros (versao revista)

Eu sei.
É que o que mais me perturbara naquele dia fora o abraço que eu dera ao Jaime e as mãos do padre Matos. Tudo o resto perdeu importância, nessa noite, na cama. A insónia das noites que se seguiram não era pela bruxa da família, nem pelo sotão dos livros, nem nada que se parecesse. Eu estava obcecado. Sexo, sexo, sexo. Dos 13 aos 16 anos não pensei noutra coisa. Tudo o resto era piloto automático. Talvez julgues que exagero, mas não. Apenas me controlava muito bem. Mas eu era como um vulcão, prestes a explodir ao menor descuido. Foi por isso também que inventei as aulas de norueguês. Eu precisava de mais coisas para me ocupar. Para me distrair.
Eu devorara o livro das runas de um fôlego e claro que, na aula de piano seguinte, massacrei a Runa com tudo o que tinha aprendido. Perguntei-lhe se ela sabia que as runas só tinham traços verticais e diagonais porque isso tornava mais fácil gravá-las na madeira, no sentido dos veios. Se ela sabia que o alfabeto das runas se chamava futhark e que a sua versão mais comum tinha apenas 16 letras.
Claro que ela sabia. Não que fosse uma coisa normal de se saber mas o nome dela fizera-a interessar-se por isso. E depois falou-me de outro tipo de runas, não a escrita, mas as canções da região de Finnskogen, de onde a família dela era originária.
Explicou-me que “Rune” é uma palavra de origem germânica que significa segredo, ou magia, e isso significa que as canções rune são canções mágicas com origem shamanista. Há também runas líricas ou épicas, mas as mais vulgares são as de encantamento. Eram usadas por pessoas capazes de, com emoção e poder, cantar melodias improvisadas com pouco mais de cinco notas que repetiam durante horas para fazer curas ou criar protecções mágicas.
Eu perguntei-lhe mais coisas sobre o nome dela. Porque é que ela se chamava Runa, se a palavra norueguesa era “rune”. E ela explicou-me que era o mesmo que se chamar “a rune”, porque em norueguês o artigo era incluido no final do substantivo.
E porque é que o sobrenome dela se escrevia Eikaas, mas se lia “aicós”. E ela explicou-me que aa era o equivalente à letra å (que se lê “ó”), umas das três vogais extra que o norueguês acrescenta ao tradicional alfabeto latino. E que esse nome significava “colina dos carvalhos”.
Eu estava tão fascinado que lhe perguntei se ela me podia ensinar norueguês. E ela disse que sim.
A tia Júlia e a minha mãe também não disseram que não e, graças a isso, nos meses seguintes atazanei o Jaime com os meus ridículos e básicos conhecimentos de uma língua estranha, que nunca nenhum de nós tinha ouvido antes. O suficiente para ele se roer de inveja (o que era precisamente o objectivo). Até talvez tenha sido um pouco demais porque depois ele começou a pedir à tia Júlia para aprender também norueguês. Mas ela não foi na cantiga. Ela raramente cedia aos nossos caprichos. Em vez disso pô-lo a aprender árabe. Como se fosse a mesma coisa…

022 - Os Herdeiros (versao revista)

Foi ele quem correu para mim e me ajudou a levantar. Enquanto me observava, tentando ver se eu tinha partido alguma coisa, observei-o eu a ele, ambos indiferentes à histeria do Jaime e da tia Júlia que saltitavam à nossa volta.
Ele era bastante novo, bastante bonito e com uns olhos ternos mas decididos, que eram a sua maior arma, tal como a voz. Davam-lhe a liderança em qualquer situação. E no entanto, logo nesse momento eu soube que estava algo errado. Que o padre Matos não devia ser padre. Agora sei que o estava a comparar com outra pessoa, mas foi isso que, felizmente, me fez construir desde logo uma reserva em relação a ele.
Ninguém teve a mínima dúvida quando ele anunciou que eu estava bem, que era só o nariz a sangrar e alguns arranhões. Ele fora chefe de escuteiros, disse-nos, e tinha experiência nestas coisas. Os miúdos estavam sempre a aleijar-se.
A tia Júlia estava visívelmente mais aliviada, mas isso não livrou o Jaime de um raspanete. Enquanto ela corria a buscar algodão e água oxigenada para me limpar, ia desfiando a série de castigos que o iam ocupar durante a semana.
O padre Matos aproveitou a saída dela para me dizer que eu já podia tirar a revista pornográfica de dentro das calças. Ele sentira o livro das runas, quando me apalpara para ver se tinha costelas partidas. Eu assim fiz, sem me rir da “piada” dele, mais para aliviar o incómodo do que para lhe explicar que aquele volume não era nada do que ele julgava. O Jaime nem achou estranho que eu estivesse a esconder um livro, mas ambos olharam curiosos para a capa quando o pousei na secretária. E depois olharam para mim, como se a queda me tivesse afectado o juízo. Mas a tia Júlia voltou e o caos dos primeiros socorros acabou por desviar as atenções e nos levar para a sala, onde ela depois serviu chá e biscoitos para repor a calma e a ordem. O padre Matos contou-nos histórias dos escuteiros e, sendo ele tão absolutamente magnético e divertido, até acabou por ser uma tarde bem passada.
Assim se insinuou ele nas nossas vidas, quase sem darmos por isso, conquistando imediatamente a afeição do Jaime e da tia Júlia, só por me ter levantado do chão e nos ter feito rir com anedotas de adolescentes a cagar no mato.
E eu ria-me também, e tentava atribuir aquela sensação de que algo estava mal a todos os acontecimentos e neuroses do meu dia. Muito tempo passou até me ocorrer perguntar o que fora o padre Matos fazer a casa da tia Júlia naquela tarde. Tempo demais. Anos demais.
Como pude ser tão cego?

021 - Os Herdeiros (versao revista)

Voltemos àquela tarde.
Enquanto descia as escadas, de volta ao apartamento da tia Júlia, escondi o livro debaixo da camisola. Estava decicido a não mostrar fraqueza, orgulho ferido ou o que fosse.
Ela estava na cozinha, a arranjar feijão verde, e quando eu entrei levantou apenas os olhos por um segundo.
“Então? Achaste alguma coisa que te interessasse?”
“Não.”
“É natural. É demasiada tralha.”
“De onde vieram aqueles livros. Não são seus, pois não?”
“Agora são. Mas vieram de muitos sitios diferentes. A maioria foi herdada. A família do Augusto lia muito.”
“Porque não os dá?”
“Porque havia de o fazer? E a quem havia de os dar?”
“Não os vai ler todos, pois não? Podia doá-los a uma biblioteca.”
“Mas eu gosto de cuidar deles. E os livros encontram sempre os seus leitores. Tarde ou cedo eles chamam alguém para os ler. Nem que leve anos... ou séculos... Não te preocupes por eles estarem fechados. Não estão. Os livros têm uma vontade própria e só se deixam ler quando querem, não achas?”
“Não sei.”
“Trancaste a porta e trouxeste a chave?”
“Sim.”
“Então guarda-a. Fica essa para ti. E depois, quando acabares de ler esse livro que tens escondido na camisola, volta a pô-lo lá.”
Felizmente a campainha tocou nesse momento e a tia Júlia foi abrir a porta sem ligar ao facto de eu ter corado até à ponta dos cabelos.
Deixei-me estar na cozinha um bocado, mas quando percebi que tinham chegado visitas e que a tia Júlia as ia receber na sala, não me apeteceu ficar sozinho a sentir-me miserável. O Jaime já tinha voltado da aula de judo e estava no quarto dele, sentado na cama, com os livros da escola espalhados à volta, embrenhado nos trabalhos de matemática.
“Sabes onde estive?”, perguntei-lhe.
“A Vó disse que tinhas ido ao sotão.”
“Sabias do sotão e já lá foste?”
“Claro que já lá fui!”
“Eu não sabia que havia um sotão.”
O Jaime levantou os olhos da matemática.
“É giro não, é? Tem montes de tralha.”
“Porque é que nunca ninguém me disse que havia uma biblioteca no sotão?”
“Julguei que sabias.”
“Não. Não sabia.”
“Isso é porque nunca prestas atenção a nada.”
E dito isto voltou a concentrar-se nos trabalhos de casa. Eu sentei-me na cadeira da secretária, a apurar uma fúria silenciosa. Sentia o livro debaixo do cinto das calças a magoar-me a barriga e só me apetecia pegar nele e atirá-lo à cabeça do Jaime.
Ele não tardou a estranhar o meu silêncio.
“O que foi?”
“Nada!”
Ele ficou a olhar para mim até que disse:
“Anda cá, vou-te mostrar o que aprendi hoje!”. Tirou os livros da cama e pôs-se de pé a saltitar no colchão.
“Não me apetece.”
“Vá lá! Não sejas maricas. Eu não te aleijo.”
Eu acedi porque não estava com cabeça para inventar uma desculpa para fugir áquilo. O Jaime tentava sempre ensinar-me todos os novos golpes de judo que aprendia. Desta vez eu tinha de ficar atrás dele e tentar apertá-lo com uma espécie de abraço. E quando pus os braços à volta dele, e enquanto ele os ajeitava para que estivessem no sítio certo, o calor do corpo e o cheiro a lavado do cabelo dele encheram-me de uma tristeza súbita. Foi esse o problema. Eu devia estar a simular um ataque, mas estava mais a derreter-me de encontro ao corpo dele. Antes que pudesse sequer aperceber-me devidamente do que se passava, ele deu-me um puxão e eu voei por cima do ombro dele com tal velocidade que, em vez de aterrar no colchão, como era suposto, fui bater na secretária e depois nos tacos do chão. Ficou tudo negro por uns segundos e embora não sentisse nenhuma dor nesse momento, sabia que assim que me levantasse e o susto passasse me ia sentir todo partido, por isso deixei-me ficar deitado, na posição em que tinha caído e, como me sentia algo miserável, resolvi juntar uns gemidos e umas lágrimas ao sangue que me escorria do nariz.
O Jaime, alarmado, ajoelhou-se no colchão e debruçou-se repetindo incessantemente, “Estás bem?! Estás bem?!” E passos no corredor anunciaram a chegada da tia Júlia que perguntava “O que é que se passa?! O que é que vocês fizeram agora?”. Com ela vinha também um homem, a visita a quem ela fora abrir a porta. Deitado no chão, eu só lhe via os pés, os sapatos negros brilhantes, as calças pretas. Foi para o ver melhor que me resolvi levantar, em vez de continuar com a choradeira e a fita que tinha começado a fazer. Ele estava todo vestido de negro, exceptuando o revelador colarinho branco e o crucifixo dourado que lhe pendia de um cordão ao peito. E embora eu nunca tivesse conhecido nenhum padre, havia algo de perturbadoramente familiar na sua figura. Algo que, como te disse, levou todos estes anos até me voltar à memória.

020 - Os Herdeiros (versao revista)

- várias frases riscadas até se tornarem ilegíveis -

Desculpa, não ligues a esta riscalhada toda.
Aconteceu uma coisa estranha agora mesmo. Enquanto me tentava acalmar voltei a tentar ligar para o telemóvel do Jaime, como tinha feito todos os dias, várias vezes ao dia, a semana passada. Mas depois daquela noite, não sei porquê fiquei convencido que ele não o tinha, que talvez o tivesse perdido ou deixado nalgum sítio. E mesmo enquanto vinha para aqui, e enquanto corria a cidade e ligava para tudo o que é hotel em Salzburgo não me ocorreu voltar a ligar-lhe.
E não sei porquê, fiz isso agora. Ou antes, sei muito bem: desespero irracional.
Mas, em vez do sinal de desligado que estava à espera, o telefone tocou. Ninguém atendeu, mas só ouvir-lhe a voz no gravador de mensagens encheu-me de alegria. E fiquei tão surpreendido que não soube o que dizer e não deixei mensagem. Por isso voltei a ligar. Mas o telemóvel estava de novo desligado.
Não sei como interpretar isto. Ou ele tem o telefone e não quer mesmo falar comigo ou então outra pessoa estava a mexer nele. E porque desligaria alguém o telefone logo depois de eu tentar telefonar? Se era ele quem o tinha na mão então deve ter visto no écran que era eu quem estava a ligar. E se não era ele… oh merda!

Roí as unhas e comi o chocolate do mini bar (o preço é uma roubalheira, mas que se lixe). Já estou mais calmo.

019 - Os Herdeiros (versao revista)

Começou a nevar. Parei de escrever porque estava a ficar com dores no pulso. Bem me arrependo de não ter trazido o meu iBook. Não me lembro de alguma vez ter escrito tanto à mão. Mas preciso disto. No momento em que fui para a janela encostar a testa ao vidro para me refrescar (estes austríacos são uns fanáticos do aquecimento central) o meu cérebro voltou ao caos dos últimos dias. É demasiado. Escrever ajuda-me a focar e sinto que as coisas que te devo dizer são coisas que eu próprio preciso saber, mesmo que sejam memórias minhas. A nossa condição de humanos é tão imperfeita… Fazer sentido das coisas não é o mesmo que recordá-las e muito menos vivê-las na pele...
Depois também estive a ver televisão, mas nem o canal porno (grátis!) me conseguiu distrair. É esta certeza de que o Jaime está em perigo que me deixa completamente desfeito. Como ele estava diferente em tua casa! Como pode uma semana mudar tanto assim uma pessoa?
Que pergunta…eu sei. A mesma semana fez com que eu agora nem me reconheça no espelho. Esta barba, esta cicatriz.
Ele está em perigo e é por minha causa. Eu sei. Sinto-o. Porque outro motivo me esconderia ele tanta coisa? Se a seta com que me fez esta ferida me tivesse atingido no coração eu não duvidaria por um segundo de que foi lançada por amor. Felizmente ele tem boa pontaria... e esta ferida não é nada. O que me dói é que ele julgue que me pode proteger mantendo-me longe e ignorante do que se passa. Que pateta. Que idiota!
E como eu estou preocupado, Joana. É que ele é um bocado de mim, e não adianta que seja ele a sofrer em vez de mim. A dor é sentida pelos dois (tu viste como ele chorou por me ter ferido). E ele É meu irmão. MEU irmão!

018 - Os Herdeiros (versao revista)

Seguiu-se uma inédita mistura de impotência com fascínio. É que havia de tudo: livros novos misturados com velhos, ficção com tratados científicos, revistas entremeadas com enciclopédias encadernadas. Mas o verdadeiro espanto era a diversidade de línguas. Era uma autêntica babilónia. Porque não havia apenas livros em confortável inglês, françês, espanhol, italiano ou alemão… havia também livros nos alfabetos e línguas mais delirantes, começando por grego ou russo e indo do árabe para o geórgio, tailandês, indiano… e por aí fora até chinês e japonês. Não que eu conseguisse exactamente destinguí-los, ou soubesse sequer dar-lhes nomes como cirílico, cóptico ou aramaico, mas a minha cultura visual era suficiente para destinguir coisas que pareciam “grego” de outras que pareciam “árabe” e outras que pareciam “chinês”.
Fiquei por ali ainda algum tempo, hipnotizado por imagens, alfabetos e pela esmagadora constatação de que o mundo e a humanidade eram uma coisa muito grande. Senti-me minúsculo. Eu pouco mais era que um rato naquele sotão.
E depois senti uma certa raiva para com a tia Júlia. Era tão típico dela ter-me mandado para ali sózinho, sem a mínima explicação, sem o menor aviso. O que era isto? Uma lição de humildade para o rapazinho que apanhava porrada na escola porque lia mais do que os outros e tirava “excelentes” nos testes de português? Que gostava de assustar os professores citando Fernando Pessoa e fazendo metáforas com referências a Milton, Dante, Camões, Virgílio e Homero?
E por outro lado, eu tinha a certeza de que ela estaria lá em baixo, a contar todos os minutos que eu passasse ali e não deixaria de olhar, com aquele seu falso desinteresse de coruja, para qualquer livro que eu decidisse levar para ler.
Levantei-me numa fúria e decidi que dali não levaria nada e que iria fingir que nada daquilo me interessava, só para a magoar.
Mas sabes, (eu sei que sabes), há um magnetismo tão grande nos livros… Se eu não percebia como é que na casa da tia Júlia os livros que se queria e precisava apareciam logo ali ao nosso lado, mais estranho ainda é o fenómeno que já vivi em incontáveis livrarias e bibliotecas. De, de repente, de entre toda uma enormidade de volumes, aparecer um que temos de agarrar, que sabemos, com uma certeza que só se equipara à certeza do amor, ter lá dentro tudo o que precisamos para dar descanso à mente e ao espírito.
Eu já tinha um pé no primeiro degrau da escada quando vi um livro que me fez parar. E depois de pegar nele, virá-lo, desfolhá-lo, cheirá-lo, amaldiçoei-me a mim próprio por não ser capaz de manter uma decisão simples. Tive de o levar.
Era um livro até bastante pequeno, bastante recente, bastante “barato”. Uma edição brasileira de um original inglês. O título era: “Decifrando as runas vikings”.

017 - Os Herdeiros (versao revista)

Eu sempre julgara que o prédio terminava no quarto andar, onde vivia o Doutor Moreira, um senhor advogado que raramente víamos e que só parecia existir no Natal, quando ia lá a casa agradecer o bolo rei que a tia Júlia lhe mandava por mim e pelo Jaime, o seu comité natalício que distribuia bolos pela vizinhança. É que, embora ela se divertisse a desconstruir o nosso Natal com as suas histórias de cometas, rituais pagãos saturninos, ou o eterno favorito “Pai Natal ou São Nicolau - o discípulo de Frankenstein”, ela fazia sempre várias fornadas de bolo-rei para oferecer. E não só para os vizinhos (e isso era outra coisa estranha, como ela conhecia tanta gente mesmo que raramente saísse de casa).
Mas lá estava, uma porta oposta à do apartamento do Doutor Moreira, e, com a chave que a minha mão suada segurava, a fechadura abriu-se facilmente. Aí havia umas escadas, pintadas com tinta esmalte vermelha, vi eu, assim que acendi o interruptor ao lado da ombreira. E, lá em cima, uma única divisão a todo o tamanho do prédio, completamente atulhada de livros.
Não vale a pena começares a imaginar um sotão escuro e poeirento, como costumam ser nos livros de aventura e mistério. A tia Júlia gastara bastante dinheiro a pôr aquele sitio em condições, fiquei a saber, quando mais tarde lhe expressei a minha admiração. Depois de comprar aos vizinhos as partes que lhes cabiam no tempo em que fora uma arrecadação do condomínio, húmida e poeirenta, a tia Júlia reconstruira praticamente o sotão todo e instalara electricidade, um ar condicionado e usara materiais e vernizes a que os insectos não acham grande piada. E, como o pé direito era relativamente alto na maior parte do sotão, apesar da quantidade absurda de livros, tinha-se a sensação de estar num sítio espaçoso e arrumado. Não era para admirar. Fiquei também a saber depois que, semanalmente, a dona Otília passava ali uma manhã com o aspirador.
A minha primeira reacção, plantado ao cimo das escadas, foi de espanto. E depois senti-me como se tivesse ganho a lotaria. Aquilo eram livros para ler até ao fim da vida! Avancei por aqueles corredores de papel em êxtase salivante e reverência mística. Mas, em pouco mais de meia-hora, depois de explorar estantes, caixotes e pilhas de livros, a minha excitação inicial esmorecera até se tornar num profundo e quase magoado desapontamento. É que apenas uma pequeníssima parte daqueles livros era em português.

016 - Os Herdeiros (versao revista)

No dia seguinte, antes de começar a minha “caça à bruxa”, resolvi investigar a questão dos livros, que era uma coisa que me intrigava muito mais. Chegado da escola, sentei-me na mesa da sala e, com a tia Júlia na cozinha e o Jaime ainda nas aulas de Judo, em vez de fazer os trabalhos de casa, resolvi contar os livros.
A sala estava, o que se podia chamar “arrumada”. A dona Otília estivera ali de manhã e, por onde ela passava, nada ficava torto, desalinhado ou poeirento. Num primeiro olhar, ninguém diria que esta divisão tinha livros. Mal nos apercebiamos de alguns sobre a mesa, outros sobre o piano, mais uns junto ao sofá, outros no parapeito da janela, outros… Comecei a contar. 184. Cento e oitenta e quatro livros naquela sala. Eu nem acreditava. Estavam por todo o lado. Mal comecei a reparar neles a sala transformou-se num ninho de víboras. Havia livros em cima, por baixo, ao lado e atrás do sofá. Nas mesas, nas cadeiras, dentro dos móveis, e até, espanto dos espantos, alguns arrumados nas prateleiras.
Transferi a obsessão para o resto da casa. Cozinha, casas de banho, corredor, quartos, armários e despensa. 1525. Mil quinhentos e vinte e cinco.
É claro que o meu súbito frenesi não passou despercebido à tia Júlia. Enquanto eu contava os livros na despensa (onde fui descobrir a “Mensagem” de Fernando Pessoa entre as latas de grão e o acúcar) ela veio meter o nariz para me perguntar, “Estás à procura de alguma coisa?”
“Não, mas adivinhe o que achei entre as latas do grão”
“A Mensagem, de Fernando Pessoa”.
“Como é que sabe?!”
“Fui eu que o pus aí. O que estás a fazer?”
“Estou a contar os livros que tem em casa”.
“Oh, mas aqui em casa não há quase livros nenhuns! Eu detesto estar sempre a tropeçar neles e ponho tudo no sotão.”
“Há um sotão neste prédio?”
“Toma!” Tirou do bolso uma chave e deu-ma. “Vai lá ver o sotão e deixa-me a despensa em paz.”

015 - Os Herdeiros (versao revista)

Comecei por perguntar à minha mãe, “o que faz a tia Júlia?”
“Que pergunta é essa? Ela não faz nada, quer dizer, trata da casa e de vocês e já é mais que muito.”
“Mas ela não faz mais nada? Nunca teve uma profissão?”
“Que eu saiba não.”
“Então e o dinheiro? Ela tem mais dinheiro do que nós.”
“António, não te quero a falar assim!” E pôs-se a olhar para mim de lado, a colher da sopa ainda na mão que lhe amparava o queixo. “A tia Júlia tem uma pensão que tira do que herdou da família e do marido”.
“Como é que sabes?”
“Como, como é que sei? Sei e pronto! Cala-te lá com isso e come a sopa. É muito feio falar de dinheiro à mesa.”

Nessa noite, já na cama, pus-me a pensar na vida da tia Júlia. Ela estava sempre em casa, ou pelo menos era essa a impressão que eu tinha, mas eu só passava lá as tardes e às vezes os serões. Mesmo o Jaime estava fora todas as manhãs, algumas tardes e ao fim de semana nós saíamos muitas vezes com a minha mãe. Também nas férias, fossemos nós nalguma excursão ou passeio, a tia Júlia recusava-se sempre a acompanhar-nos.
O que fazia ela?
Duas vezes por semana ia lá a Dona Otília fazer as limpezas e engomar a roupa (e continua a ir), por isso, de afazeres domésticos, a tia Júlia pouco mais fazia que cozinhar e, de vez em quando, coser as meias do Jaime. Era frequente eu encontrá-la a ler, sentada num cadeirão do escritório ou da sala mas, embora ela parecesse sempre à vontade para falar de qualquer assunto, da cultura helénica à teoria quântica, passando pelas filosofias de Nietzsche, Kant e Santo Agostinho, a julgar pelo que costumava ter nas mãos, ela pouco mais lia que policiais da Agatha Christie.
E ao pensar nisso nisso, ocorreu-me outra questão ainda mais estranha. De onde vinham os livros que apareciam lá por casa? É que não havia nenhuma grande estante ou biblioteca, nenhum tesouro de Próspero, e no entanto, naquela casa, tinham-me passado pelas mãos todas as comédias e tragédias de Shakespeare, todas as aventuras algumas vez escritas por Julio Verne, Tolkien, Enid Blyton e Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada. Já para não falar nos dicionários, enciclopédias e todo o género de tomos informativos ou fantásticos que apareciam de algum lado sempre que se precisava deles. O total oposto da minha casa, onde a minha mãe ordenava os livros, com um militarismo alemão, na estante que cobria uma parede inteira da sala e de onde eles raramente saíam.
Em casa da tia Júlia havia sempre livros. Mais livros até que na biblioteca da escola, que eu achava sempre diminuta, e, no entanto, eu não me conseguia recordar de alguma vez os ter ido procurar a uma prateleira. Eles estavam em todo o lado mas não eram postos em sítio nenhum, simplesmente flutuavam por ali. E quando eu pensava na enorme quantidade deles que já tinha lido, mesmo com apenas 13 anos, não conseguia perceber onde eles se iam enfiar antes e depois de serem lidos.
Nessa noite não dormi.

014 - Os Herdeiros (versao revista)

Sabes, eu sempre senti um ciúme secreto do Jaime. Por ser ele quem vivia com a tia Júlia. E é estranho estar a dizer, escrever isto pela primeira vez. Ainda mais nestas circunstâncias tão…oh, tão irónicas!
Não duvides, por favor, do meu amor pela minha mãe. Mas há sempre um apelo especial naquilo que não se possui. Eu invejei muito tudo o que o Jaime tinha. Os brinquedos - mais que os meus e mais caros do que os meus. A escola privada - com uniformes, bons professores e festas de Natal com teatro e prendas. As aulas de tiro com arco, judo e natação. Mas acima de tudo, o facto de, ao fim do dia, ele continuar na casa da tia Júlia, de dormir lá, de ser, de facto, aquela a sua casa. De a tia Júlia ser mais dele do que minha.
Mas, é claro, isso eram tolices infantis, e eu sei o esforço que a tia Júlia sempre fez para nos tratar como iguais, mesmo com todas as diferenças de posse. E tão difícil que isso deve ter sido para ela, sei eu agora. Bastou-me olhar para ti, Joana…
Além disso, o Jaime sempre foi o mais generoso dos irmãos. O que tinha ele que eu não tivesse? Ele sempre se fez uma parte de mim. E vice versa.
Por isso eu tinha a certeza de que, se eu não sabia que as vizinhas chamavam bruxa à tia Júlia, menos o sabia ele. E foi por isso que resolvi descobrir o que se escondia de verdade por trás daquela história. Se algo houvesse naquilo que pudesse magoar o Jaime, devia primeiro magoar-me a mim.

013 - Os Herdeiros (versao revista)

Demorei mais tempo do que o costume a regressar a casa, pensando no que de facto aquilo queria dizer. Nós éramos todos tão pouco religiosos e supersticiosos. Principalmente a tia Júlia que, todos os natais, insistia em nos contar a “verdadeira” história de São Nicolau, pondo especial ênfase na parte das criancinhas esquartejadas dentro da salgadeira (que, admito, era a nossa parte favorita). Desmistificar, era a palavra de ordem para tudo o que a tia Júlia dizia e fazia. Porquê lhe davam então as vizinhas o título de bruxa?
Aquilo perturbava-me, mas não devido a essa palavra … a quê, então?
Ao fundo da rua, a Sé de Lisboa estava já iluminada e eu lembro-me de ter sido essa uma das vezes em que mais fortemente uma vertigem histórica se apossou de mim. É raro pensar com tanta consciência em tudo o que já se passou no sítio onde vivemos. É uma colina de lisboa que já viu fenícios, gregos, romanos, visigodos, mouros, cristãos. As nossas ruas ficam entre a Praça do Rossio, onde já se queimaram bruxas, judeus e sodomitas, e a Prisão do Limoeiro onde, mais recentemente, se torturaram, não com menor requinte, intelectuais e liberais diversos. Ou seja, tudo pessoas com quem a nossa família reúne afinidades. E no entanto, como a minha mãe costumava dizer, “Que tempos abençoados estes em que vivemos, apesar de tudo". E depois vinha abraçar-me e acrescentava: “Sabes a sorte que temos? Eu, que nasci depois da guerra, e tu, que nasceste depois da ditadura? És uma criança abençoada, António. Aproveita a sorte de teres nascido agora. Olha só os livros todos que tens à tua disposição, tudo o que há no mundo na tua mão, sem censura e sem limites”. (Ela ainda repete isto, de vez em quando.)
Eu, naquele momento, saco cheio de batatas e cebolas, a caminho de casa, senti-me de facto previligiado, porque a minha mente, por segundos, quase conseguia ter a noção da enormidade do que se passara ali, naquela rua, naquela colina, naquela cidade, para que eu pudesse ir assim, tão despreocupado para casa, sem medo de bruxas. Uma vertigem histórica em que desfilava uma crescente erosão de preconceitos e superstições que permitiam que eu, nesse preciso momento, soubesse que os meus valores me permitiriam olhar lucidamente para este perturbante facto, de ter uma “bruxa” na família. E essa lucidez, que eu sempre tenho prezado tanto, devia-se, deve-se, precisamente, à tia Júlia.
Percebi assim que não era de facto a palavra “bruxa” que me perturbava, mas a implicação de que havia algo na vida da tia Júlia que me era desconhecido, talvez vedado. Ou, pior ainda, algo que ela ocultava de mim julgando que eu não fosse capaz de compreender.

012 - Os Herdeiros (versao revista)

Eu nunca compreendera bem as reticências que a minha mãe punha em relação à tia Júlia. É que, apesar de termos começado a passar muito tempo lá, ela nunca deixava de manter uma certa frieza (que nem sequer lhe vinha dos genes alemães). A princípio, suponho que, de um modo inconsciente, liguei isso ao suicídio do meu pai mas, como esse era o assunto de que nunca se falava, apesar de estar no cerne do nó que unira as nossas famílias, deixei que continuasse imerso nas névoas do tabu.
Eu já devia ter uns treze anos quando, finalmente, me tive de confrontar com uma parte da vida da tia Júlia que, embora estivesse estado sempre presente, eu nunca tinha verdadeiramente visto, ou tomado consciência que existisse.
Aconteceu da maneira mais prosaica, ao fim de uma tarde em que a minha mãe me pedira para ir comprar batatas e cebolas à mercearia da esquina (que fica precisamente na esquina da rua entre a da tia Júlia e a nossa). Eu esperava para pagar, enquanto uma freguesa à minha frente falava com a dona do estabelecimento. Eu não seguia a conversa porque olhava para os chocolates, mas a certo ponto uma delas começou a falar de uma mulher do bairro que, pela descrição, eu identifiquei imediatamente como sendo a tia Júlia, embora o nome não fosse mencionado. E depois, referiu-se a ela como bruxa. E não era um insulto, ou mera difamação porque (e isto foi o que mais me surpreendeu), ao dizer a palavra, a sua voz baixou para um tom de grande respeito, ou reverência mesmo.

011 - Os Herdeiros (versao revista)

Se a minha mãe começara por me despejar à tarde na casa da tia Júlia, fora por puro desespero. O horário dela na faculdade era bastante preenchido e o que ganhava não era suficiente para se poder dar ao luxo de me pôr num sitio que me ocupasse os tempos livres e onde se certificassem que eu fazia os trabalhos de casa. Quando a tia Júlia me pôs a aprender piano, a única coisa que pediu à minha mãe foi autorização. E ela, nesses termos, não se lembrou de nenhum motivo contra.
A vida social da minha mãe era quase nula. Trabalho, casa, trabalho e, os tempos livres que não passava comigo, ocupava-os também com trabalho na sua vertente mais lúdica, lendo literatura alemã. Suponho que em tempos isso fora um prazer. Agora tornara-se só parte da profissão. Até o plano dela de me ensinar alemão era constantemente adiado porque, depois de passar grande parte do dia a dar aulas, em casa preferia ficar calada. Não tinha amigos e a família resumia-se a nós dois e uns primos dela, que, embora não fossem os tais ramos mortos da árvore genealógica, continuavam a viver na Alemanha e ela já nem postais de Natal lhes mandava.
Os serões em casa da tia Júlia, cuja frequência se foi progressivamente transformando num hábito diário, eram para ela um escape à monotonia e mediocridade académica. Costumava apenas ficar a ouvir-nos mas, de vez em quando, observava que falávamos de coisas anormalmente adultas e culturais. E depois queixava-se de que, desde que deixara de seguir as novelas, não tinha mais assunto para conversas na universidade. Mas nós riamo-nos e continuávamos a ouvir as explicações da tia Júlia sobre a omnipresença da regra de ouro na Natureza, por exemplo.

010 - Os Herdeiros (versao revista)

As aulas eram às terças e quintas, supostamente durante as horas em que o Jaime ainda estivesse a fazer os trabalhos dele. Mas, em breve, era ele quem ficava à nossa espera, espreitando à porta da sala para ver se ainda íamos demorar muito, intrigado com os estranhos movimentos de solfejo que eu fazia enquanto entoava penosamente o nome das notas. E como a tia Júlia acabou por pagar horas extra à Runa, que não se importava nada de extender as aulas até ao limite da minha paciência (que era grande), passou a ser o Jaime a ficar impaciente e a entreter-se atazinando a tia Júlia para lá dos limites da paciência dos santos.
O castigo dele tomou a forma de aulas de tiro com arco. Na altura ninguém se questionou porquê, parecia apenas uma boa maneira de tirar o Jaime de casa às terças e quintas à tarde. Eu roí-me de inveja. É muito mais cool ser o Robin dos Bosques do que o Chopin. Quando ele apareceu lá em casa pela primeira vez com o arco e as flechas que ia usar nas aulas ficámos uma boa hora a olhar para elas, pousadas em cima da cama, numa reverência histérica e babada. É claro que quisémos brincar aos índios e cowboys mas a tia Júlia advertiu-nos logo que aquilo não era um brinquedo e que se nos ouvisse a ulular pelos corredores era ela quem nos arrancava o escalpe. Aquilo era uma actividade séria. Um desporto. Uma das provas olímpicas. E para enfatizar a sua importância, enfadou-nos com a história das olimpíadas.
A Runa, por seu lado, apercebendo-se da minha súbita falta de concentração nas aulas, voltou a trazer discos. E ouvimos a abertura de “Guilherme Tell” de Rossini enquanto ela me contava a história dessa ópera. Que eu contei ao Jaime, à tia Júlia e à minha mãe nessa noite, enquanto ouviamos o disco, emprestado pela Runa, e comiamos a sobremesa.
Essa foi a primeira noite em que a minha mãe acedeu a ficar para jantar.
Na altura, eu era demasiado novo para entender pequenas subtilezas sociais, mas agora sei que essa noite foi a primeira grande vitória da tia Júlia. Conseguira finalmente juntar-nos aos quatro e começar a construir qualquer coisa parecida com um lar, uma família.

009 - Os Herdeiros (versao revista)

Ao chegar da escola, na tarde seguinte, encontrei uma senhora alta, de penetrantes olhos azuis, à minha espera na sala. Fiquei ainda mais intimidado depois das apresentações. Ela era estrangeira, norueguesa. Apesar do seu sorriso e do sotaque divertido, aquilo não prometia vir a ter piada nenhuma, e o piano, regressado à sua habitual verticalidade, parecia rir-se de mim com os seus dentes restaurados. O Jaime fora recambiado para o quarto dele e depois também a tia Júlia se retirou para que eu pudesse ter a minha primeira aula de música. Porque, embora o plano fosse ensinarem-me a tocar piano, eu primeiro tinha de aprender música, por isso, nas primeiras aulas pouco toquei. A Runa (era o nome da professora) teve de começar por me ensinar a ler e a escrever música, com enorme paciência. Durante semanas apresentou-me o mundo das pautas, compassos, claves, mínimas, semínimas e colcheias. Era um conceito interessante, como se podia escrever num papel os sons que se ouviam, mas aqueles símbolos não significavam nada para mim. A minha relação com a escrita musical era totalmente abstacta, mesmo que ela tocasse as notas no piano. E quando ela se apercebeu disso, compreendeu que tinha de começar por me fazer ouvir música e por isso, durante algumas aulas, pouco mais fizémos que dedicar-nos à audição de discos que ela trazia. Começámos por clássicos agradáveis e didáticos como “Pedro e o Lobo” de Prokofiev e “The young persons guide to the orchestra” de Britten, que ela ia comentando, mas por fim chegou o momento que me marcaria a fogo. Quando eu, arrepiadinho até aos ossos pela abertura da “Carmina Burana” de Carl Orff, tive de lhe perguntar para confirmar:
“Mas isto está escrito? É possível ler ISTO de um papel?”
Ela deu uma gargalhada, mas depois, percebendo o que eu queria dizer, assentiu seriamente com a cabeça. E foi isso, mais do que qualquer outra coisa, que me pôs na disposição de aprender tudo o que ela tivesse para me ensinar.
O Fortuna, velut luna…

008 - Os Herdeiros (versao revista)

Havia um piano em casa da tia Júlia. Estava plantado na sala, verticalmente encostado a uma parede, no lugar onde se esperaria uma televisão, e devia ter começado a criar raízes aí no século XIX. Fazia tão parte da casa como o estuque trabalhado dos tectos e certamente sobrevivera a todas as mudanças de proprietários do apartamento. Era um pouco como o actual frigorífico, que é o que normalmente fica para trás, quando se vende uma casa. Aposto que, na altura de uma mudança, aquele piano, ganhava nomes como “traste monstruoso” ou “elefante desafinado”. Era um objecto esquecido e a única utilidade que ainda tinha era como prateleira para molduras, bibelots e livros. Mas dava um certo “ar” à sala, e julgo que era por isso que nem mesmo a tia Júlia, que era tão prática e pouco dada a “ares”, o deixara ficar. E também, não se conseguia deixar de ter pena daquele objecto tão desastradamente elegante.
Outra característica do piano era ter um efeito magnético em momentos ociosos. Ninguém resistia, a dada altura, a abrir-lhe a tampa e carregar nas teclas. Os adultos que faziam isso paravam imediatamente assim que a primeira nota, num volume inesperadamente alto, ecoava pelo prédio. Era um som de agonia metálica e mecânica tão insuportável que só se podia gemer em compaixão para com o pobre instrumento.
Mas as crianças, ou seja, eu e o Jaime, tinhamos um verdadeiro fascínio por aquilo e, em fantásticos duetos a quatro mãos, ou despiques à vez, aperfeiçoávamos a arte de extorquir dali os mais arrepiantes, insuportáveis e massacrantes sons. O objectivo final era fazer com que a tia Júlia viesse lá de dentro ensandecida e gritasse o seu habitual “Pelos sete demónios de Madalena!!!”, que era a sua expressão máxima de exasperação e que nunca falhava para nos deixar em convulsões de riso histérico.
A brincadeira tomou tais proporções que a tia Júlia teve de tomar medidas drásticas. E fui eu quem fez o copo transbordar com a última gota de água.
Os meus mais solitários momentos de ócio eram passados naquela sala, nas tardes em que eu tinha de esperar que o Jaime acabasse os trabalhos de casa dele. A tia Júlia normalmente deixava-me com um livro e ia para a cozinha tratar dos afazeres domésticos. Mas isto passou-se numa fase anterior áquela que te descrevi, em que o tráfico clandestino de livros me andava a alimentar um vício de leitura. Isto de que te estou a falar passou-se quando eu tinha oito, quase nove, anos e a única coisa que me interessava era que o Jaime se despachasse para irmos montar a pista de carros para fazermos corridas. Não havia livro no mundo capaz de merecer a minha atenção, nesses momentos. E a minha fonte de consolo era aquele piano, que, com a sua voz de pecador torturado num círculo fundo do inferno, era a única coisa capaz de expressar o que me ia na alma.
E, por mais raspanetes, e mesmo promessas de tareia que a tia Júlia me fizesse, eu não conseguia ficar sentadinho nos cadeirões da sala, com um livro no colo. Pelo canto do olho, aquele mastodonte anti-melódico chamava-me sempre para uma sessão de catártica agonia sonora.
Até que um dia, vinda lá de dentro numa fúria, depois de me atirar com a praga dos sete demónios da Madalena, a tia Júlia olhou para mim seriamente e deve ter tido uma epifania. Em vez de me dar os açoites que o comum mortal adoraria descarregar em cima de mim, disse-me, numa voz gelada, que não estava para aturar os meus olhitos de bambi hipócritas:
“Muito bem! Foi a última vez que isto aconteceu. Agora vais-te sentar ali, ler o teu livrinho e ficar calado. E eu vou tratar imediatamente do teu castigo. Vais ver, meu menino… nem sabes o que te espera!”
E foi para o telefone pôr em acção o seu mais maquiavélico e diabólico plano, que acabaria por me moldar, irremediavelmente, a vida.

007 - Os Herdeiros (versao revista)

Que acharás tu do Jaime? Tu só o viste duas vezes e ambas foram…bem…chamemos-lhes… circunstâncias invulgares.
O Jaime tem exactamente a mesma idade que eu (e a mesma que tu, claro). Isso, as viuvezes da minha mãe e da tia Júlia e a nossa vizinhaça foi o que de início fez com que passássemos tanto tempo juntos.
Mas uma coisa que acho curiosa, agora que olho para trás e vejo a mão da tia Júlia em tanta coisa, é que, embora ela cuidasse da nossa educação com igual interesse, nós nunca estudámos juntos na mesma escola. O Jaime era sempre posto em escolas particulares, liceus finos, universidade privada e eu estive sempre no ensino público.
Era só as tardes que passávamos juntos e, mesmo assim, muitas vezes, eu tinha de esperar que ele acabasse os trabalhos de casa, porque os meus faziam-se em meia-hora enquanto que os dele levavam a tarde quase toda. Mas eram depois as poucas horas ao fim do dia que valiam. Quando brincávamos juntos.
A minha mãe chegava antes do jantar para me vir buscar, vinda da universidade. Tão exausta que mal conseguia cozinhar. Mas, apesar dos meus pedidos insistentes, ela raramente cedia a ficar em casa da tia Júlia para jantar. Acho que ela queria aqueles momentos só para nós, mesmo que eu comesse a sopa de trombas, a pensar na nave espacial de legos que eu e o Jaime tínhamos começado a construir. E insistia em rever comigo os trabalhos de casa. Eram sufocantes, os trabalhos de casa. Uma idiotice. E as nossas noites passadas frente à televisão, uma seca. Eu não me interessava pelas novelas e a minha mãe adormecia no sofá em menos de vinte minutos. Era nessas alturas que a ausência do Jaime se assemelhava a uma dor. A minha mãe a ressonar, a sala iluminada pela aura inane da televisão, e o resto da casa às escuras. E a minha solidão.
Para além do Jaime, os meus únicos amigos eram os livros. O que não era exactamente saudável. Não preciso explicar-te em detalhe o que isto fazia à minha vida na escola. Eu era o menino que fazia sempre os trabalhos de casa, sabia tudo e tinha sempre boas notas. Odiavam-me de morte, na escola. E eu odiava aquele culto diário da estupidificação metódica.
Quando foi que a minha mãe cedeu à tia Júlia? Não sei precisar a data. Mas começou certamente com as minhas aulas de piano. E de norueguês.

006 - Os Herdeiros (versao revista)

Outra coisa que também se torna evidente no que escrevi. É que, de certo modo, vinte anos depois, continuo sem ter uma noção realista do que se passa à minha volta. Que tenho andado a viver como se a vida fosse uma festa, quando afinal é um velório.

Perdoa-me, Joana. É difícil combater toda esta morbidez quando durante uma semana (ou uma vida) se anda encharcado em morte e em sangue (E isto literalmente! A propósito, a ferida já se nota pouco. A cicatriz vai ficar grande, de certeza, mas fica um pouco escondida pela barba, que estou seriamente a pensar deixar crescer, e só aqui no quarto é que tenho tirado o cachecol. É estranho olhar-me no espelho. Fico mesmo diferente de barba. Bastou uma semana sem a fazer. E sinto-me diferente, também. Sabes, acho que estou a precisar de chorar, para verdadeiramente voltar a mim, mas estou tão cansado que nem isso consigo fazer…)

Enfim, perdoa-me todas estas digressões mas é difícil não me perder. Li e reli o que já escrevi e percebo que isto não será útil apenas para ti. Eu preciso voltar a sítios da minha vida que são como aquele corredor da casa da tia Júlia que achei tão comprido e escuro aos cinco anos. Agora sei perfeitamente onde estão os quartos, a despensa, a cozinha. Sei onde vai dar cada uma das portas. Mas não é o hábito que torna as coisas mais compreensíveis. O hábito cega-te. Eu preciso voltar a esse corredor e tentar perceber o que vi quando abri as portas, em diferentes momentos da minha vida. Tenho a certeza que será aí que vou achar a pista de que preciso agora para encontrar o Jaime. As páginas amarelas de Salzburgo são inúteis. Talvez até consiga perceber do que é que ele anda a fugir (ou o que é que ele anda a combater?). Porque, sabes, eu tenho uma séria suspeita do que é, mas, como o Dom Quixote alternativo, eu, neste momento, preferia não acreditar em gigantes…

005 - Os Herdeiros (versao revista)

Mesmo que haja qualquer coisa de dura verdade nesta analogia de Dom Quixote e Sancho Pança, a nossa relação nunca foi essa. O Jaime para mim é um… (deus, a nossa família é tão complicada!)… um primo, um irmão, um amigo, um amante. É o meu…amado.
Mas deixa-me explicar-te a genealogia. Ninguém ta explicou ainda e isso é-te mais do que devido. É muito simples até, mas, não sei porquê (e, de momento, nem quero tentar saber porquê), enredámo-nos todos, voluntária ou involuntáriamente, numa teia de enganos para quem estava de fora porque se trocaram nomes (e mesmo pessoas, como sabes… mas lá chegaremos…).
O meu pai era, de facto, sobrinho da tia Júlia. É por isso que a minha mãe sempre lhe chamou tia. E eu, de ouvir a minha mãe, chamava-a assim também.
O Jaime chamava-lhe avó Júlia porque ela fora casada com o senhor Augusto, verdadeiro avô dele, mas ela não fora mãe do pai do Jaime.
Ou seja, eu e o Jaime se calhar nem somos suficientemente chegados por laços de sangue para sequer nos chamarmos primos. Crescemos em casas diferentes, mas fomos criados como se fôssemos irmãos.
Aqui está o básico, antes me de meter na dor de aprofundar o assunto. Pensa nisto como uma história e começa a lê-la imaginando-nos a crescer como se fôssemos primos ou irmãos.
Nós moramos com duas ruas de premeio, mas acabámos por fazer uma pequena família, eu e a minha mãe, o Jaime e a avó dele. É que, a toda a volta, para onde quer que se olhasse nos ramos da árvore geneológica, só havia mortos. E desses, evitava falar-se. (Principalmente do meu pai, porque a minha mãe nunca lhe perdoou o facto de ele se ter enforcado na cozinha, no dia do meu primeiro aniversário).
Embora fossemos vizinhos próximos, foi só depois da morte do senhor Augusto que começámos a frequentar mais a casa da tia Júlia. É um bocado parvo dizer “frequentar”, como se fosse um café, porque, na verdade, é a minha outra casa. Foi há tanto tempo que nem me lembro de quando a comecei a sentir isso, que as duas casas eram uma, quase como se a casa onde vivia com a minha mãe fosse o quarto e a cozinha e a casa da tia Júlia, a sala, a biblioteca e o quarto do Jaime (o meu outro quarto).

Voltei a ler o que te escrevi sobre aquele episódio do velório do senhor Augusto e percebi que, de facto, até aquela altura, a casa da tia Júlia era um território inexplorado para mim, com sítios proibidos, assustadores mesmo. E é muito estranho pensar nesses termos sobre um sítio que se tornou um lar para mim e no qual nada me é estranho. Nem mesmo o quarto da tia Júlia, que fora muito tempo o santo dos santos, porque, nos últimos anos, durante a doença dela, juntávamo-nos todos aí, como se fosse a sala, como se nada se passasse…E sabes, nessa altura, nem por um momento me lembrei que fora naquela mesma cama, onde a tia Júlia ia morrendo aos poucos, que eu vira o homem de negro sentado ao lado do senhor Augusto. Nem quando me sentei no mesmo sítio onde ele se sentara e disse ao Jaime, igualmente drenado de sentimentos, constatando o facto, as mesmas palavras que dissera ao homem de negro: ela está morta.

004 - Os Herdeiros (versao revista)

A minha relação com o Jaime foi, desde sempre, moldada pela tia Júlia. É claro que eu me apercebia disso, mas só nestas últimas semanas se tornou claro o frio, calculado, propósito de tudo. E é isso que me tem perturbado, porque não creio ter compreendido ainda a verdadeira extensão daquilo que, receio, seja…

(espera, deixa-me explicar outra coisa primeiro)

Esta manhã, no quiosque do aeroporto, enquanto olhava para os livros (velhos hábitos nunca se perdem, de resto como ia eu passar o tempo? A roer (ainda mais) as unhas?), houve uma recordação que me assaltou quando vi uma edição alemã do Dom Quixote (sim, comemorativa do aniversário e por isso encadernada e com ilustrações — é tão lindo achar coisas destas num quiosque de paperbacks!).
A forma como a tia Júlia nos fazia ler os clássicos era verdadeiramente insidiosa. Esse era um daqueles seus planos abertamente maquiavélicos de que, depois, ela própria se ria. Acontecia eu achar, casualmente, metido na minha mochila da escola, entre os livros de Física e Matemática, as Fábulas de La Fontaine, ilustradas por Gustave Doré. E, em vez de passar a tarde a fazer os trabalhos da escola, devorava aquelas histórias com animais sábios e tolos.
É claro que eu sabia que fora ela quem colocara o livro ali. Mas era um segredo. Só meu e dela. E depois, inevitavelmente, mais tarde ou mais cedo, haveria um interrogatório. Subtil, mas impiedoso.
Estaríamos a lanchar, e ela, cortando o queijo, diria:
“Diz o povo que comer muito queijo torna as pessoas esquecidas.”
E eu:
“Ai é? “
“Mas não os meninos bonitos. E tu és um menino bonito, não és, António? Diz lá…”
E eu ria-me.
“Um corvo é que não sou de certeza! Mas a tia é uma raposa! Das mais matreiras!”
E ríamo-nos os dois. E o Jaime ficava a olhar para nós, a perguntar:
“O que foi? O que foi?”
“Explica-lhe lá…” diria ela, e eu passaria a tarde a contar as fábulas que lera ao Jaime, começando pela da raposa que elogiara a voz do corvo para que ele abrisse o bico e deixasse cair um queijo. Ela ficava a ouvir-nos. Sorridente. Orgulhosa. E eu feliz, por saber que não a deixara mal. O facto de ela me deixar falar, ensinar algo ao Jamie, sabendo que eu sabia e confiando esse saber a mim, era o único elogio de que eu precisava. E isto era viciante.
Meses ou semanas depois, acharia eu, por acaso, na mesa da sala, uma cópia do Dom Quixote, ilustrado também por Gustave Doré, aberto na página em que Sancho Pança puxa o burro teimoso monte acima e olha desconsolado para o Dom Quixote e o Rocinante, que caíram ridiculamente de pernas para o ar, derrotados pelos moinhos. Divertidíssimo, eu pegava no livro, lia umas quantas páginas, e tinha de o “roubar”. Punha-o na mochila e lia-o em casa, de uma assentada, ao longo de umas quantas noites. Depois devolvia-o. Foi neste sistema que depois vieram “A Divina Comédia”. E o “Paraíso Perdido”. Gustave Doré como diabólico cúmplice da tia Júlia.
Mas o que me veio à memória no aeroporto foi uma conversa que tivémos já nem sei quando, em que ela aproveitou para me tentar explicar uma coisa através do Dom Quixote. Tinhamos começado a falar de religião (assunto banal naquela casa) e depois de fé, e de crença, e no final a conversa descambou mais ou menos nisto, exemplo típico da lição de moral à la tia Júlia:
“António, as pessoas acreditam no que querem acreditar. Não podemos ridicularizar a fé das outras pessoas porque aquilo em que elas acreditam é a realidade para elas. A realidade é sempre uma construção mental do indivíduo. Lembras-te do Dom Quixote? Do episódio dos moinhos? Dom Quixote e Sancho Pança passam por uns moinhos num monte e o Dom Quixote, convencido de que estes são gigantes, ataca-os e acaba espatifado e feito num oito, com o Sancho Pança espantado com tanta loucura e ridículo.
Mas agora, imagina tu o oposto. Imagina que, de facto, os moinhos eram gigantes que, ao longe, Dom Quixote toma por moinhos porque não acredita na existência de gigantes. Seriam ambos certamente atacados pelos gigantes e Dom Quixote, fraquito como era, não conseguiria defender-se nem a si nem ao seu amigo. Talvez se safasse, porque, afinal de contas, tinha uma armadura, mas os gigantes seriam certamente maus e impiedosos, pelo que, nesta versão inversa, Sancho Pança não escaparia com vida e seria ele a jazer no chão, mas inevitavelmente morto. E seria o Dom Quixote, sobrevivente amolgado, a lamentar a sua própria insanidade.
Agora, o que achas preferível? Alguém que se submete ao ridículo por acreditar em algo sobrenatural ou alguém incapaz de salvar um amigo da morte por não acreditar naquilo que tem em frente dos olhos?”

003 - Os Herdeiros (versao revista)

Salzburgo, Dezembro de 2005

Querida Joana:

Creio que esta vai ser a carta mais longa da minha vida e suponho que acabará por a conter, para que percebas. Pelo menos para que tenhas uma idéia melhor do que se está a passar. Não que contar-te a história da minha vida te vá permitir perceber tudo o que se passou porque nem eu consigo ainda tirar grande sentido de tudo isto (e, francamente, cada vez tenho mais medo de o fazer…). Mas sinto que to devo.
Cheguei aqui hoje, ao fim da manhã e, mal larguei as malas no hotel, saí à procura do Jaime. Tanto quanto sei, não está em nenhum hotel. Mas também só fui a alguns mesmo no centro. A propósito, Salzburgo é uma cidade estupidamente bonita (apesar da pirosa, assustadora, fatigante, ubíqua, omnipresença de Mozart) mas, como calculas, não estou com uma disposição de turista. Se estivesse com o Jaime, num dos nossos passeios, seríamos verdadeiramente as irmãs Schlegel, como as mamã nos chamava, a meter o nariz em tudo o que fosse igreja, museu ou livraria. A tomar cafés e chás nas esplanadas. A apreciar vistas panorâmicas… Mas está frio, um frio de rachar, e eu estou sozinho como a merda e Salzburgo começou a deprimir-me. Ou, para ser mais exacto, a deixar-me mais triste do que preocupado. O tempo estava carregado de nuvens logo quando aterrei e só tem ficado pior. À tarde começou a chover, mas à noite é bem capaz de nevar, com o frio que está. Voltei para o meu hotel e pedi as páginas amarelas na recepção. Passei metade da tarde a ligar para hotéis. Nada.
Enfim… depois desisti e tenho estado aqui às voltas, como um animal na jaula sem saber o que fazer. O que estou eu aqui a fazer?…
Há bocado dei por mim a ter pena de não saber rezar. E depois enfureci-me comigo mesmo por estar a ser tão estúpido e a ter uma recaída cristã. Mas é o desespero, sabes?… eu sei que sabes…
Espero que não estejas zangada comigo mas, como espero que venhas a perceber depois de leres isto, fiz o que o meu coração mandou. (É tão antiquado, falar assim. Tão novelista e vitoriano… que importância tem o meu coração no meio disto tudo?) Mas também sei que, se não tivesse seguido aquele impulso, teria ficado retido em Portugal. De certeza que não me deixavam sair do país.
Espero que a polícia não te esteja a dar muitos problemas. A minha mãe tentou telefonar-me mas eu não estou ainda em condições de falar com ela. Mandei-lhe só um sms a dizer que estou bem, que está tudo bem.
Mas não está nada bem. Há semanas que nada está bem. Desde que a tia Júlia morreu que tudo se tem estado a desmoronar. Tem sido um pesadelo. Um “mareritt” — a palavra norueguesa é bem melhor, neste caso. Significa, numa tradução muito livre e misturada com o “nightmare” inglês (que afinal tem a mesma origem), um cavalgada nocturna num cavalo selvagem. É isto que verdadeiramente sinto. Que me montaram na garupa de um dos cavalos do apocalipse. Sem sela. E eu estou a fazer os possíveis para me aguentar. Para não cair e ser esmagado por cascos em fogo.
A minha mãe vai-te ajudar, vais ver. Ela tem um espírito prático. Verdadeiramente germânico.
Mas nada…nada, Joana, percebes?, nada me vai fazer deixar de sentir remorsos por te deixar assim, com a casa…não, com a vida, toda coberta de sangue, manchada de horror.
A única explicação que há para isso é o meu amor pelo Jaime. E é isso, principalmente, que eu te vou tentar explicar.

002 - Os Herdeiros (versao revista)

A minha mãe apareceu então e ralhou-me, perguntando-me porque era mau, porque não ficava quieto e dormia como um bom menino e porque fora para ali, o que estava ali a fazer. Ia-me fazendo todas estas perguntas, numa voz sussurrada mas zangada, irritada, enquanto me pegava ao colo e levava de volta para a festa que, começava eu a perceber, era um velório (se bem que eu lhe chamasse simplesmente funeral, incapaz de distinguir entre as diferentes socializações e burocracias da morte).
Achei que precisava de me desculpar e disse:
“Estava a conversar com aquele senhor.” e apontei para o fundo do corredor, para a porta que ela fechara cuidadosamente atrás de nós.
“Não sejas mentiroso!”
“Eu não sou mentiroso!”
“Então não digas disparates. Aquele senhor já não pode falar.”
“Ele falou comigo.”
“Ai, tanto disparate, vamos ter de pôr pimenta nessa língua.”
Isto alegrou-me um bocadito porque pimenta era coisa de adultos, que nunca me tinham deixado experimentar mesmo que eu pedisse. Mas não percebi a que propósito vinha isto.
Entrou na festa ainda comigo ao colo e riu-se para a tia Júlia, a avó do Jaime.
“Veja lá este tontinho. Entrou no quarto do senhor Augusto e disse-me que estava a falar com ele.”
A tia Júlia não se riu. Olhou para mim muito séria e só então é que eu percebi que devia ter feito uma grande asneira.
“Vem cá”, disse ela, e estendeu os braços para que eu passasse do colo da minha mãe para o colo dela. E depois sentou-se logo numa cadeira, que eu já era pesado. Aliás, já começava a ser estranho que me pegassem assim. Há muito tempo que eu não pedia colo e também já ninguém mo queria dar. Era difícil perceber se estavam mesmo zangadas comigo, com tanto mimo.
“Então, conta lá, que conversa era essa com o Augusto?”
Comecei a perceber melhor o que se passava. Era o funeral do senhor Augusto, o avô do Jaime. Eu só o vira uma vez. Era o senhor que costumava ficar sentado num cadeirão, no quarto, às escuras. A razão porque nunca se podia fazer barulho nos fundos da casa. O motivo porque se tinha de fazer silêncio a certas horas do dia. Não era uma pessoa de quem eu gostasse muito.
Compreendi que era ele quem estava deitado na cama, com os sapatos brilhantes, mesmo que não lhe tivesse visto a cara. E por isso disse:
“Não era com ele que eu estava a falar, era com o outro senhor.”
“Então, o que é isso? Agora pões-te a inventar histórias? O que é que te deu? Estás mesmo a querer levar uma palmada nesse rabiosque!” A minha mãe estava mesmo zangada comigo. Eu tentei começar a chorar, mas não estava lá muito triste por isso só devo ter conseguido fazer uma cara ridícula. Beiçinho, uma ameaça de choro fingido. A tia Júlia olhava para mim, séria, mas com vontade de se rir.
“E quem era esse senhor, diz lá à tia.”
“Não sei.”
“Como é que ele era?”
“Tinha uma camisa preta.”
Ela olhava-me fixamente. Aquele olhar que ela sempre teve, que não admitia mentiras.
“Cabelos brancos?”
“Sim.”
“Um fio de ouro, com uma cruz, por cima da camisa?
Esta pergunta era mais complicada. Fechei os olhos e tentei lembrar-me. Deve ter sido isso, juntamente com todo o interrogatório que impediu que me esquecesse do homem, mesmo tendo passado tanto tempo sem que a memória voltasse a trazer à tona este episódio que só agora, vinte anos depois, faz tanto sentido, explica tanto.
“Sim, o senhor tinha um colar.”
Então a tia Júlia sorriu um pouco. Voltou-se para a minha mãe.
“Deixa o miúdo, Marta, ele não está a mentir.”
“Mas tia, não estava lá mais ninguém!”
A tia Júlia voltou-se para mim e começou a pentear-me com a mão, que era coisa que me irritava que os adultos fizessem. Mas achei melhor ficar quieto. Eu estava nas boas graças dela e era melhor aproveitar.
“Estava sim, Marta. Mas tu não o podias ver.”
A minha mãe não disse nada. Ficou só a olhar para mim. Eu achei que já devia estar tudo bem por isso disse:
“Posso comer bolo?”
A tia Júlia fazia imensos bolos, fosse qual fosse a ocasião. Estava um em cima da mesa e eu tinha estado o tempo inteiro a olhar para ele.

001 - Os Herdeiros (versao revista)

Isto é o que tenho de começar por te contar. Aconteceu teria eu cinco, talvez seis anos. Aconteceu por causa do sangue. Eu tinha sangrado, sabes, por ter batido com a cara numa cadeira. Eu e o Jaime andávamos sempre a correr. E havia uma festa. Eu julguei que era uma festa. Tínhamos vindo a casa do Jaime porque havia uma festa, foi a explicação que achei para tanta gente em casa deles. Uma festa de adultos, mesmo que estivessem todos de negro e não houvesse música.
Eu e o Jaime brincávamos, que os adultos pouco nos interessavam, e, na correria, eu bati numa cadeira e comecei a sangrar do nariz. Sei que fiquei coberto de sangue e lembro-me de chorar, não por estar a sangrar, mas por ter medo que me batessem por me ter sujado.
Levaram-me da sala, limparam-me, assoaram-me, tirando o sangue, o ranho e as lágrimas. Vestiram-me de lavado com roupas do Jaime e depois tentaram deitar-me no quarto dele. Eu fingi dormir para que me deixassem sozinho. E quando fiquei em paz levantei-me para ver os brinquedos. Ele tinha um comboio. E carrinhos. E quando me cansei disso abri a porta do quarto e olhei para o corredor. Estava escuro, e era demasiado comprido, todo portas. Eu ouvia o ruido da festa, as vozes dos adultos, mas ninguém podia saber que eu estava acordado. Resolvi experimentar as outras portas. A casa de banho. Um armário. E depois um quarto.
Neste nunca tinha entrado. Pela porta entreaberta espreitei lá para dentro. Estava escuro e na cama estava deitado um homem, vestido e calçado. Fato preto e sapatos engraxados, de negro brilhante. Ao lado dele sentava-se outro homem, na beira da cama. Estava também vestido de negro, mas apenas de calças e camisa. Camisa negra. Foi isso que eu achei estranho. As camisas eram sempre brancas. Branco era o cabelo dele, a contrastar com a roupa. Ele olhou para mim. E sorriu. Eu disse:
- Ele está morto.
Não foi uma pergunta. Apenas disse o que percebera nesse momento, que o homem deitado estava morto.
O homem da camisa preta assentiu. E depois disse-me qualquer coisa. E durante vinte anos não me lembrei dessas palavras.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

Onde esta o Antonio?

Grande Passatempo "Os Herdeiros":

- Prémio para o primeiro leitor que conseguir ver nesta foto um grupo de escuteiros a acampar na serra de Sintra.
- Menção honrosa para quem conseguir ver o Palácio da Pena.

Porque ainda tenho saudades da Noruega







mais fotos em:

http://home.online.no/~boethius/senja/bilder.htm

quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

Distraido

Há 2 meses que isto saiu e eu a viver na ignorância!



Agora vingo-me ouvindo-o até à exaustão.

um pelo na engrenagem

Há dois dias que estava com problemas no rato do computador. Por mais que eu mexesse a coisa para trás e para a frente, o cursor não se movia à velocidade do costume. Parecia os ratos antigos, quando a bolinha e as roldanas ficam cheias de caca. Mas o meu rato é daqueles modernaços, com infravermelhos, que brilham no escuro e parecem o culminar dos feitos tecnológicos da humanidade. Depois de desesperar e já estar a considerar comprar um novo, descobri finalmente a causa do problema: um pequeno pêlo (fibra de camisola, não desses que já estavam a pensar!!!) estava alojado no buraquinho de onde sai o raio infra-vermelho e não deixava a coisa ler o movimento em condições.
É definitivamente a variante actual do grão na engrenagem.
Senti-me muito macho e integrado no novo século por ter conseguido, sózinho, resolver um problema tecnológico deste calibre.

PS - A despropósito disso, vi os novos mac portáteis. Quero um!

terça-feira, 10 de janeiro de 2006

nas nuvens

Para quem se interroga porque é que ando a escrever menos, a resposta é: ando a pintar mais.



E pelos vistos estou cada vez mais kitsch... nem eu acredito nisto! Faz-me lembrar aqueles doces com tanto açúcar que, mal se dá uma dentada, tem-se logo dor de dente. É pecado ficar-se fascinado pelo horror que se produz?

segunda-feira, 9 de janeiro de 2006

025 - Os Herdeiros

Mas o curioso é que, quanto mais nos afastávamos nas disciplinas de estudo, ele com os desportos e o árabe e eu com a música e o norueguês, mais próximos nos sentíamos. Passávamos fins de tarde e fins de semana juntos, a conversar, a construir o nosso pequeno mundo a partir do que cada um trazia, dizia, pensava. Mas éramos párias. Era difícil fazer outros amigos, na escola ou fosse onde fosse. Não conseguíamos pertencer a sítio nenhum senão juntos. E isso tornou-se cada vez mais… insuportável.
Houve algumas tentativas de nos pôr a socializar com outros “jovens”, todas falhadas. Eu não tinha nada para conversar com outros alunos da Runa e o Jaime contentava-se a mandar para o colchão todos os colegas do Judo. Até a tia Júlia, achando-nos demasiado “incestuosos”, convenceu-nos uma vez a ir acampar com o padre Matos e um grupo de antigos escuteiros.
O padre Matos tinha começado a aparecer com alguma regularidade lá por casa. Ele parecia apreciar as discussões teológicas que tinhamos com ele, mesmo que eu e o Jaime o deixássemos com os cabelos em pé com algumas das nossas opiniões sobre religião. Chamava-nos “os pequenos comunistas”. E eu levava-o a sério e tentava-lhe explicar que embora os meus pontos de vista tivessem de facto uma base socialista, havia ainda assim um sentido gnóstico em mim que me levava a achar as teorias marxistas um tanto áridas. Mas ele nunca lera Marx e não percebia bem do que é que eu estava a falar. Por isso não me levava a sério.
Não que ele nos tentasse pregar a fé. Nada que se parecesse. Desde o pricípio que ele percebera que éramos um caso perdido, mas acho que ele gostava das nossas discussões precisamente para reassegurar a sua própria fé. Não há como ter alguém contra nós para nos ajudar a solidificar crenças e argumentos. E acho que ele devia também estar um pouco farto de falar com as beatas, que embora fossem as da freguesia da Sé de Lisboa, pouco se desviavam nas suas conversas dos dogmas de um catolicismo supersticioso de aldeia.
Assim aconteceu que, tendo-se ele tornado uma visita relativamente regular, a tia Júlia lhe acabasse por pedir que ele nos levasse “a arejar” num passeio de antigos escuteiros que ele mencionara.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2006

viva la net

Depois destes anos todos ainda me surpreendo com a internet.
Andando sabe Deus por que caminhos, eis que acho um curso de árabe online:
http://i-cias.com/babel/arabic/

Objectivo de vida: compreender as letras das músicas do próximo album do Michael Jackson
(que, para quem não sabe, se converteu ao Islão e vai fazer um album de baladas cantadas em árabe)

quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

024 - Os Herdeiros

Eu sei. É que o que mais me perturbara naquele dia fora o abraço que eu dera ao Jaime e as mãos do padre Matos. Tudo o resto perdeu importância.
Eu estava obcecado. Sexo, sexo, sexo. Dos 13 aos 16 anos não pensei noutra coisa. Tudo o resto era piloto automático. Talvez julgues que exagero, mas não. Apenas me controlava muito bem. Mas eu era como um vulcão, prestes a explodir ao menor descuido. Foi por isso também que inventei as aulas de norueguês. Eu precisava de mais coisas para me ocupar.
Eu devorara o livro das runas numa noite e claro que, na aula de piano seguinte, massacrei a Runa com tudo o que tinha aprendido. Perguntei-lhe se ela sabia que as runas só tinham traços verticais e diagonais porque isso tornava mais fácil gravá-las na madeira, no sentido dos veios. Se ela sabia que o alfabeto das runas se chamava futhark e que a sua versão mais comum tinha apenas 16 letras.
Claro que ela sabia. Não que fosse uma coisa normal de se saber mas o nome dela fizera-a interessar-se por isso. E depois falou-me de outro tipo de runas, não a escrita, mas as canções da região de Finnskogen, de onde a família dela era originária.
Explicou-me que “Rune” é uma palavra germânica que significa segredo, ou magia, e isso significa que as canções rune são canções mágicas com origem shamanista. Há também runas líricas ou épicas, mas as mais vulgares são as de encantamento. Eram usadas por pessoas capazes de, com emoção e poder, cantar melodias improvisadas com pouco mais de cinco notas que repetiam durante horas para fazer curas ou criar protecções mágicas.
Eu perguntei-lhe mais coisas sobre o nome dela. Porque é que ela se chamava Runa, se a palavra norueguesa era “rune”. E ela explicou-me que era o mesmo que se chamar “a rune”, porque em norueguês o artigo era incluido no final do substantivo.
E porque é que o sobrenome dela se escrevia Eikaas, mas se lia “aicós”. E ela explicou-me que aa era o equivalente à letra å (que se lê “ó”), umas das três vogais extra que o norueguês acrescenta ao tradicional alfabeto latino. E que esse nome significava “colina dos carvalhos”.
Eu estava tão divertido que lhe perguntei se ela me podia ensinar norueguês. E ela disse que sim.
A tia Júlia e a minha mãe também não disseram que não e, graças a isso, durante meses atazanei o Jaime com os meus ridículos e básicos conhecimentos de uma língua estranha, que nunca nenhum de nós tinha ouvido antes. O suficiente para ele se roer de inveja (que era precisamente o objectivo). Talvez tenha sido um pouco demais porque depois ele começou a pedir à tia Júlia para aprender também norueguês. Mas ela não foi na cantiga. Ela raramente cedia aos nossos caprichos. Em vez disso pô-lo a aprender árabe.

terça-feira, 3 de janeiro de 2006

023 - Os Herdeiros

O padre correu para mim e ajudou-me a levantar. Enquanto me observava, tentando ver se eu tinha partido alguma coisa, observei-o eu a ele, ambos indiferentes à histeria do Jaime e da tia Júlia que saltitavam à nossa volta.
Ele era bastante novo, bastante bonito e com uns olhos ternos mas decididos que eram a sua maior arma, tal como a voz. Davam-lhe a liderança em qualquer situação. E no entanto, logo nesse momento eu soube que estava algo errado. Que o padre Matos não devia ser padre. Agora sei que o estava a comparar com outra pessoa, mas foi isso que, felizmente, me fez construir uma reserva em relação a ele.
Ninguém teve a mínima dúvida quando ele anunciou que eu estava bem, que era só o nariz a sangrar e alguns arranhões. Ele fora chefe de escuteiros, disse-nos, e tinha experiência nestas coisas. Os miúdos estavam sempre a aleijar-se.
A tia Júlia estava visivelmente mais aliviada, mas isso não livrou o Jaime do raspanete. Enquanto ela corria a buscar algodão e água oxigenada para me limpar, ia desfiando a série de castigos que o iam ocupar durante a semana.
O padre Matos aproveitou a saída dela para me dizer que eu já podia tirar a revista pornográfica de dentro das calças. Ele sentira o livro das runas, quando me apalpara para ver se tinha costelas partidas. Eu fiz isso sem me rir da “piada” dele, mais para aliviar o incómodo, do que para lhe explicar que não era nada do que ele julgava. O Jaime nem achou estranho que eu estivesse a esconder um livro, mas ambos olharam curiosos para a capa quando o pousei na secretária. E depois olharam para mim, como se a queda me tivesse afectado o juízo.
Mas a tia Júlia voltou e o caos dos primeiros socorros acabou por nos levar para a sala, onde ela depois serviu chá e biscoitos para repor a calma e a ordem. O padre Matos contou-nos histórias dos escuteiros e, sendo ele, tão absolutamente magnético e divertido, acabou por ser uma tarde bem passada.
Assim se insinuou ele nas nossas vidas, quase sem darmos por isso, conquistando imediatamente a afeição do Jaime e da tia Júlia, só por me ter levantado do chão e nos ter feito rir com anedotas de adolescentes a cagar no mato.
E eu ria-me também, e tentava atribuir aquela sensação de que algo estava mal a todos os acontecimentos e neuroses do meu dia. Muito tempo passou até me ocorrer perguntar o que fora o padre Matos fazer a casa da tia Júlia naquela tarde. Tempo demais. Anos demais.
Como pude ser tão cego?

segunda-feira, 2 de janeiro de 2006

A familia real

As mães, precisamente por serem tão previsíveis, são quem normalmente se sai com as maiores surpresas.
A minha, este Natal, ofereceu-nos (a mim e ao meu namorado) um conjunto de toalhões de banho com as nossas iniciais bordadas. A minha primeira reacção foi pensar: "pronto, agora é que nunca mais conseguimos ter uma casa de banho minimalista, moderna e digna de reportagem fotográfica na Wallpaper", mas agora confesso que gosto muito de olhar para as nossas toalhinhas lado a lado, o D ao lado do B, em arabescos quase ilegíveis. Comove-me.